sábado, setembro 23, 2006

O diário (post 2)

Quando era mais pequeno – primeiro pré-adolescente, depois adolescência adentro – tinha um diário. Era-o na verdadeira acepção da palavra, sob diversos pontos de vista, tanto no que diz respeito à assiduidade (na entrada seguinte a um dia de ausência escrevia: “ontem não pude escrever porque...”), como no que diz respeito à minha forma de o encarar – era factual, um repositório das minhas acções, das acções dos outros, dos meus pensamentos e dos dos outros, mas sempre em relação a uma acção qualquer. Foi assim até tarde, até a um momento fatídico, até a um verão especial em que tudo aconteceu sem na verdade ter acontecido tanto quanto isso (não é assim que as coisas são sempre quando somos adolescentes?)
Curiosamente, o barroquismo sempre lá esteve, um pouco na maneira de pensar, um pouco na maneira de escrever, um pouco noutras pequenas características mais desviantes e desviadas da norma, mas não completamente expressas ou manifestas... digamos: latentes ;) . Por exemplo, nos seus três cadernos (dois e meio para ser mais exacto, porque na verdade ele ainda existe, não foi encerrado ou dado como terminado, embora agora, por exemplo, tenha ficado em Lisboa, por isso já se vê a distância que entretanto se criou entre nós) sempre foi impúdico e esquizofrénico, sempre quiz sair do anonimato e ser anónimo ao mesmo tempo, sempre foi sendo lido como um livro de contos, entrada a entrada, a alguma namorada, amiga mais próxima, ou simplesmente a um público inexistente que faria esgotar dezenas de edições do best-seller inesperado – mas enfim, isto era apenas a semente da minha sempre exacerbada megalomania barroquista a despontar; o meu animal de palco a decidir por mim; o exibicionismo contido a esforço para contrabalaçar uma timidez (mal) forjada e de conveniência.
Pelo meio houve uns cadernos dos atrofios – os originais, em papel – mas que nunca foram ideia ou projecto meus, por muita estima que lhes tivesse! E mesmo assim eram muito factuais, eram atrofios em sentido lato, eram públicos, mas eram reais, existiam. Não eram, como agora, apenas palavras encadeadas, muitas vezes exclusivamente com o critério de poderem ser encadeadas desta forma e não de outra. Apenas objectos quase artísticos com uma beleza intrínseca, som puro, harmonia, eufonia... independentemente do conteúdo que possam carregar e das coisas maravilhosas que possam dizer – e o recheio nem sempre tem de ser o principal ponto de atracção, como espero provar hoje durante o dia. Desviei-me, à grande: NÃO, NÃO eram isto, nem os cadernos dos atrofios nem o(s) meu(s) diário(s).
E depois aquele verão em que descobri tantas coisas novas. O verão de uma road-trip, de uma certa história com uma certa jante, do Tabu... o Tabu, que mais ou menos ainda o é apesar de já não termos idade para isso, mas que me disse muito sobre mim próprio e forjou a nossa relação da forma que tem agora. A descoberta do sexo e tudo o que isso muda, para o futuro e retrospectivamente, e mesmo o facto de que a nossa relação também foi interrompida e reinventada depois desse verão. E, claro, a Manta Rota, o móbil, o culpado! O Jamaica (por acaso estou a misturar verões, o Jamaica até foi em 1998, não em 99), os Fêos!, o Nando, o X, o Laia, o pessoal da cidade (incrível como mundos diferentes se cruzaram tanto em tempos... ATÉ o pessoal da cidade esteve na Manta Rota), o João de Beja, o carro do Mário, a Música, a perspectiva da faculdade (embora essa estivesse só no sub-consciente), a Ana a tornar-se a minha melhor amiga, e tantas tantas outras coisas mais! E tantas outras coisas de que me lembro apesar do êxtase em que andava, mas que não posso contar aqui, porque isto é um blog, sim, mas tenho de manter a ilusão de que há passados que são só meus e que existe uma coisa chamada privacidade!
Mas estava a falar do meu diário e fui parar à Manta Rota como? Não, não foi por engano, foi nesse verão que ele morreu e nasceu outra coisa qualquer dentro de mim (aliás esse verão matou e fez nascer muitas coisas dentro de mim!!). Foi depois desse verão que o barroquismo se tornou a corrente estética dominante e abafou o meu jornalismo infantil, que as metáforas se emanciparam, que os advérbios de modo se passaram a atropelar, que as reticências e os parêntesis foram elevados a estilo e que as figuras de estilo explodiram em sons e cores de novidade, que os dias deixaram de ter importância, que as entradas se tornaram escassas, que os conteúdos passaram a ter um significado com outro subjacente e outro ainda latente e outro ainda subentendido e outro ainda metafórico e outro ainda imaginado e outro ainda adivinhado e outro ainda criado por quem me lê e outro ainda... E mais: aconteceu isso tudo, mas primeiro de forma premeditada, como um esforço consciente, para ser assim, para pensar assim, para escrever assim, para me defender de mim mesmo e sobretudo dos outros. Mas foi inventado, primeiro difícil e anti-naturalmente e depois, gradualmente, à força da repetição, do estudo e da prática, tornou-se de tal forma em mim próprio que agora não seria capaz de escrever, pensar ou ser de maneira diferente (sempre assim às voltas, para trás e para a frente, em colunas e volutas, em rebiques e rapaqueques, em adornos e ornamentos, em testamentos, assim, barroco. Barroquista!).
Tudo aconteceu a 20 e qualquer coisa (2,3,4,5, por aí) de Agosto de 1999 – agora não tenho aqui os meus diários, não posso confirmar a data exacta, e talvez nem a Ana me saiba dizer, não foi com ela que se passou. O meu diário, muito impúdico, muito exibicionista, muito com vontade de ser lido... FOI LIDO. Foi devassado. Sem a minha autorização. Sem o meu consentimento. Para ser usado contra mim. Por desconfiança. E morreu!



Epílogo: (sobretudo dedicado a amenos)
O último paragrafo tinha de ser escrito assim por questões estilísticas e de força maior literária! O diário tinha de morrer depois desta história, e tive de matá-lo assim! (bem, ele morreu mesmo, mas a questão não é essa!). Não há absolutamente rancor nenhum, ressentimento 0, desconfiança ainda menos. Não é uma crítica nem uma reprimenda, não é para fazer ninguém sentir-se mal. É um conto baseado em factos reais (alguns mais irreais, outros mais surreais). Aliás o post é, quanto muito, uma homenagem e um agradecimento MUITO sincero por, ainda que involuntária e inadvertidamente, me teres lançado no caminho do barroquismo e do que sou hoje (e virei a ser amanhã). Por acaso naquela altura até estava a precisar daquela desconfiança e quem sabe como os caminhos da vida se teriam trilhado sem aquela guinada (nunca se pode saber, não é? Por isso não vale a pena pensar-se mais nisso). Obrigado amenos, pela preocupação ingénua e mais ou menos justificada e pela defesa acérrima de leoa da sua cria! Obrigado por te teres assustado tanto com um desvio tão pequenino (imagina se fosse agora que aqui estou, tão longe, e logo na Holanda... hahahaha!).
Obrigado pela parte que te toca no meu barroquismo (que não é amenos parte)



P.s. – faz parte do barroquismo, começar a escrever um post com um plano mais ou menos traçado, com três ideias pra elaborar, e terminar com uma pequena sonata do princípio do barroco italiano com os andamentos encadeados, ou uma mega-ricercata... à procura, à procura, à procura, até que descobre uma cadência e, pronto acabou... não há cá Dominante-Tónica- Dominante-Tónica- Dominante-Tónica- Dominante-Tónica- Dominante-Tónica-Dominaaaaaaaaaaaaaaaaante... Tóóóóóóóóóóóóóóóóóóóóónica. Comecei com três linhas e acabei com... bem, ainda não acabei e já vou em mais de três páginas (o post está em documento word porque não tenho net, logo hoje que faço anos!!). O P.s. e o epílogo são uma coda... a música já acabou, mas não me apetece ceder já ao silêncio.
Logo agora que começava a ter leitores tenho de os afugentar comigo próprio. Quem é que vai ler o post até ao fim quem é? Eu sei! E comenta primeiro quem tiver a sorte ou azar de ligar a net mais cedo, mas sei quem é que vai comentar com mais entusiasmo e quem vai comentar com uma lágrima ao canto do olho e quem é que eu gostaria que comentasse e não o vai fazer!
Fim (tónica).

4 comentários:

a disse...

Nostalgia! Delirei com as justificações à amenos.

Fases marcantes das nossas vidas, vão sendo cada vez mais, mas as primeiras são as primeiras....

Anónimo disse...

Z,
tão bom que é sentir música através da escrita. tão bom que é ler música. Compôr palavras.
*

Anónimo disse...

Olha que chorei mesmo. Não tanto, nem como da outra vez, mas... foi mesmo uma lagrimita e aquele nó que tolhe o uso da fala.
Antes eram medos, agora espanto e orgulho.
Como cresceste!
Sabes que só a maturidade e o amor viabilizam o perdão?

P. S. Estás a escrever cada vez melhor. Continua.

baGa disse...

gostei, gostei, gostei! nao conheço o teu passado mas gostei de espreitar pelo buraco da fechadura, e gostaria de abrir a porta... (com a tua permissao, é claro!)
talvez um dia, quem sabe deitados na cama do quarto 8 do centro profissional do coto, a mamar um pacote de bolachas e a reviver o... futuro!