sábado, setembro 23, 2006

Histórias pequenas (post 5)

O telefonema

Chovia lá fora, o ruído contínuo e surdo enervava, mas não mais do que a consciência de que, ali sentado na sua cadeira preferida - daquelas de escritório, que se ajustam para cima e para baixo com uma manivela que faz lembrar um sistema hidraulico, e com rodas para passear pela sala/escritório e ainda com a possibilidade de simplesmente girar em torno de si própria - estava sobretudo a perder tempo precioso, aquele de que se arrependeria quando, com muito mais stress e tensão em cima, se começasse a colocar a mesma velha questão: "mas porque é que eu não comecei isto mais cedo?"
Estava neste finge-que-faz havia já algumas semanas, e a modorra começava a inquietá-lo (por estranho que pareça alguém inquietar-se com a própria modorra, como se se estivesse a observar de fora). Há dias um telefonema inesperado despertara-lhe a curiosidade, mas apenas o suficiente para afastar os olhos e o pensamento daquilo que fingia-que-fazia durante não mais que uns segundos. Era um amigo - bem, era pelo menos um bom companheiro, bom colega, era o namorado de uma grande amiga - a ligar apenas para saber como ele estava, sem mais nada, apenas para conversar cinco minutos, imbuido duma curiosidade daquelas que não espera nada em retribuição. Mas a modorra era tanta que o interesse que lhe suscitou o telefonema não foi suficiente para quebrar o gelo, e a conversa decorreu sem fluidez, fora do contexto habitual da mesa com cervejas e discussões sobre música ou futebol, e terminou rapidamente apenas com a promessa - daquelas de conveniência que ambos os interlocutores sabem, no momento em que a fazem, que não vão poder nem querer cumprir - de manter mais contacto e combinar qualquer coisa para um dia destes.
Este telefonema perdeu-se e enevoou-se na memória do faz-que-faz, e as suas acções mecânicas voltaram à mesma rotina mais rapidamente do que teve tempo para se aperceber delas. Causava-lhe desconforto a percepção de que devia largar tudo aquilo imediatamente, escolher fazer outra coisa qualquer, ir passear à chuva se fosse preciso. Mas não era capaz, não era uma questão de escolha; era qualquer coisa de invisível e indefinido que o mantinha ali, repetindo os mesmos gestos até à exaustão, obstinadamente!
Chovia, chovia ininterruptamente (ou então aquele ruído já estava gravado no seu sistema auditivo como uma banda sonora opressiva) quando soou de novo o telefone. Um número desconhecido e um "Estou sim?", a princípio soturno e macambúzio pela interrupção da sua concentração abstraída, até ao momento em que reconheceu a voz do outro lado da linha. Era um amigo, não o mesmo, um telefonema tão inesperado como o primeiro, a mesma curiosidade desinteressada, a mesma conversa descontextualizada, os mesmos resultados no mesmo tempo - com a pequena nuance de que ambos os interlocutores faziam tenção de cumprir a promessa, apesar de saberem que o tempo provavelmente se encarregaria de lhes entorpecer a motivação e o entusiasmo - mas apesar de quase todas as circunstâncias idênticas, este telefonema fez um click, acendeu uma luz, desentorpeceu-lhe a mente e fê-lo acreditar que afinal ainda havia gente lá fora que tinha o condão e o poder de mudar o nosso estado de espírito num dia cinzento e de letargia.
Fim da chamada, um minuto de olhar no vazio e pensamentos despreocupados, e depois voltou a amodorrar-se, a anular-se no piloto automático do não-pensamento e a repetir as mesmas coisas que sabia lhe faziam mal. Mas Feliz.






Os 4 botões

O drama, a tragédia, o Horror! De ir um dia a passear pela rua e ficar com as calças na mão! Que situação embaraçosa. Um botão tinha caido havia já meses, mas as calças aguentavam-se bem com o que sobrara, mas agora, agora era o desespero. O segundo botão ficava lasso e dava tanto trabalho mudar de ideias e escolher outro par de calças! Um acto de fé, uma iluminação, um salto no vazio e no escuro; "vou pregar o botão" pensou! Agulha, linha, quase total inabilidade manual, voltas e mais voltas, em excesso, mas como não sabia nada sobre a qualidade do trabalho, preferiu apostar na quantidade. Um botão firme e seguro! Conseguira! E não contente com a façanha, pregou mais três de roupas velhas, abandonadas por falta do mecanismozinho para as apertar e que tanto teimava em cair!
Foi das maiores coroas de glória que alguma vez ostentou. Pregou 4 botões!

1 comentário:

a disse...

Tu não és normal!

anseio por essa modorra, já os botões... dão muito trabalho!

:P