terça-feira, maio 16, 2006

O primeiro violoncelista da orquestra!

De súbito, a orquestra calou-se, apenas se ouve o som de um violoncelo, chama-se a isto um solo, um modesto solo que não chegará a durar nem dois minutos, é como se das forças que o xamã havia invocado se tivesse erguido uma voz, falando porventura em nome de todos aqueles que agora estão silenciosos, o próprio maestro está imóvel, olha aquele músico que deixou aberto numa cadeira o caderno com a suite número seis opus mil e doze em ré maior de johann sebastian bach, a suite que ele nunca tocará neste teatro, porque é apenas um violoncelista de orquestra, ainda que principal do seu naipe, não um daqueles famosos concertistas que percorrem o mundo inteiro tocando e dando entrevistas, recebendo flores, aplausos, homenagens e condecorações, muita sorte tem por uma vez ou outra lhe saírem uns quantos compassos para tocar a solo, algum compositor generoso que se lembrou daquele lado da orquestra onde poucas cousas costumam passar-se fora da rotina.


Idem

Salvo se.

(...) há sempre a possibilidade de que (...) um suave acorde de violoncelo, um ingénuo trilo de piano, ou apenas que a visão de um caderno de música aberto sobre uma cadeira te faça lembrar aquilo em que te recusas a pensar, que não havias vivido e que, faças o que fizeres, não poderás viver nunca, salvo se.


Idem

A morte, o Violoncelista e o cão.

A morte afagou as cordas do violoncelo, passou suavemente as pontas dos dedos pelas teclas do piano, mas só ela podia ter distinguido o som dos instrumentos (...)

O homem moveu-se, talvez sonhasse, talvez continuasse a tocar as três peças de Schumann e lhe tivesse saído uma nota falsa, um violoncelo não é como um piano, o piano tem as notas sempre nos mesmos sítios, debaixo de cada tecla, ao passo que o violoncelo as dispersa a todo o comprido das cordas, é preciso ir lá buscá-las (...)

Muito mais tarde, o cão levantou-se do tapete e subiu para o sofá. Pela primeira vez na sua vida a morte soube o que era ter um cão no regaço.


José... Saramago